quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Mudamos de endereço

Olá, se você ainda visita esta página talvez se interesse em saber que mudamos para um novo endereço: http://aameialuz.blogspot.com/

Abraços e nos escrevemos no novo blog.
Enzo

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Resenha de "O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações"

Acredito que ninguém mais passe por aqui, dada a inatividade de quase um ano do blog. Segue, de qualquer forma, parte de uma recente resenha que publiquei na revista Ponto-e-vírgula da PUC-SP. Acredito ser interessante principalmente para os colegas internacionalistas.


O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações
Tzvetan Todorov



Em seu livro O medo dos bárbaros, Tzvetan Todorov, nascido na Bulgária em 1939 e residente na França desde 1963, apresenta criticamente as maneiras como pensadores que vão desde Rousseau até Samuel Huntington entenderam as noções de civilização, barbárie, cultura e identidade. Resgatando historicamente esses termos, Todorov alcança seu objetivo principal de revelar as formas assumidas pela barbárie e pela civilização na época contemporânea.

A preocupação central do autor é mostrar como o medo dos bárbaros pode ensejar nas vítimas comportamentos tão desumanos quanto aqueles perpetrados pelos seus agressores. Conforme Todorov, “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros. [...] A história nos ensina: o remédio pode ser pior que a enfermidade” (Todorov, 2010, p. 15).

Para evitar o perigo de uma reação excessiva e, em última instância, o fim da existência da espécie humana, dadas as capacidades atuais das armas de destruição em massa, Todorov lança um apelo ao diálogo, mas não aderindo a um “angelismo qualquer” – pois ele mesmo reconhece que “não se deve deixar de combater ativamente as ameaças terroristas” (Todorov, 2010, p. 19). Assim, entendendo que é insuficiente manifestar boas intenções ou proclamar as virtudes do diálogo, ele afirma que o enfrentamento dos fatos é indispensável e exige que todos estejam abertos para questionar suas próprias certezas e evidências.


No primeiro capítulo (Barbárie e civilização), Todorov foca sua análise nos termos barbárie e civilização, definindo que “os bárbaros são aqueles que negam a plena humanidade dos outros” (Todorov, 2010, p. 27); enquanto o civilizado “é quem sabe reconhecer plenamente a humanidade dos outros” (Todorov, 2010, p. 32).

Entendendo a barbárie e a civilização como características intrínsecas aos seres humanos, o autor afirma ser ilusório tentar identificar um período específico da história da humanidade ou uma região qualquer do planeta como um exemplo de barbárie ou civilização. Pois “nenhuma cultura traz em seu bojo a marca da barbárie, nenhum povo é definitivamente civilizado; todos podem tornar-se bárbaros ou civilizados. Esse é o caráter próprio da espécie humana” (Todorov, 2010, p. 65)

No segundo capítulo (As identidades coletivas), Todorov defende que cada indivíduo participa ao mesmo tempo de inúmeras identidades, cujas amplitudes são variáveis. Ele destaca, sobretudo, três tipos de identidade: a primeira refere-se à “cultura”, com um caráter mais sentimental de apego à terra dos antepassados; a segunda, mais presente na esfera cívica, corresponde ao Estado, ao país do qual somos cidadãos; e a terceira diz respeito ao projeto moral e político ao qual decidimos aderir e em defesa dos quais somos capazes de atitudes intransigentes.

Ele procede dessa maneira, pois entende que a redução da identidade múltipla do indivíduo à identidade única permite a irrupção da violência, transformando as identidades em “identidades assassinas” (categoria trabalhada por Amin Maalouf). Matar um vizinho porque ele é tutsi significa esquecer-se de todas as outras filiações às quais ele pertence – de sua profissão até sua humanidade. Se “qualquer indivíduo é pluricultural” e se “não existem culturas puras; pelo contrário, todas elas são mistas (ou ‘híbridas’, ou ‘mestiças’)” (Todorov, 2010, p. 69), é coerente pensar que a coexistência pacífica entre as diferentes culturas do mundo deva ser possível.

Com base nessa interpretação, Todorov inicia seu terceiro capítulo (A guerra entre Ocidente e islamismo) criticando a tese de Samuel Huntington presente em sua obra O choque das civilizações. Segundo o filósofo franco-búlgaro, Huntington teria imaginado as culturas a partir de um modelo guerreiro, no qual, à semelhança de jovens combatentes, cada um convencido de sua superioridade, elas se enfrentam até o triunfo de uma e a morte de outra.

Se você chegou até aqui, talvez se interesse em ler o resto no local original: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n8/artigos/pdf/pv8-16-enzotessarolo.pdf


Abraços,
Enzo.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Marty McFly partiu a 26 de Outubro de 1985 no seu Delorean numa viagem especial. Chegou ontem ao seu destino…o futuro.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Reformas da Administração Pública Brasileira: avanços e retrocessos (II)


Para os meus quatro leitores, em especial para os companheiros do meu grupo de estudo que com certeza estavam ansiosos pela continuação do artigo, seguem abaixo as considerações sobre as reformas implantadas no período democrático. Se vocês ficarem um pouco perdidos no início, sugiro que leiam o post anterior, já que ele é a primeira parte deste artigo.

O quadro político-institucional da máquina estatal no governo Sarney ficou marcado por um anacronismo, uma defasagem entre a sociedade democrática e o Estado. O desafio era reverter esse cenário, transformando o aparelho administrativo em ente reduzido e eficiente, receptivo às demandas societárias.

Em função do contexto político-econômico do final da década de 80, entretanto poucas mudanças ocorreram na Administração Pública. Entre as destacáveis, está a intenção de valorizar a função pública com a criação de escolas e centros de aperfeiçoamento, como a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e a Fundação Centro de Formação do Servidor Público (Funcep); e o objetivo de se promover a avaliação do desempenho do servidor, instituindo um novo plano de carreira.

Enquanto o governo Sarney tentava reformar o aparelho estatal brasileiro, na Assembleia Nacional Constituinte buscava-se formular uma nova Constituição, preocupada com a ordem social, a cidadania, a organização do Estado republicano, as formas de participação coletiva e o financiamento do gasto público, dando direção e fundamento à Administração Pública. De fato, a Constituição de 1988 representou uma verdadeira reforma do Estado, como afirma Frederico Lustosa da Costa (2008).

Não obstante os avanços alcançados pela nova Constituição e pela gestão de Sarney (acompanhados de retrocessos como a adoção de um regime jurídico único a todos os servidores públicos, que transformou milhares de empregados celetistas em estatutários, provocando um problema previdenciário ainda hoje não resolvido), o desafio de tornar eficiente o aparelho estatal não foi alcançado durante a década de 80; e nem no governo Collor, que promoveu a desestatização de maneira irresponsável e extinguiu desnecessariamente vagas no serviço público.

É o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado elaborado na gestão de Fernando Henrique Cardoso, no ano de 1995, que inaugura um novo modelo de funcionamento do Estado, conhecido como “administração gerencial” (em 1998, as emendas 19 e 20 impulsionariam as medidas dessa reforma, ao modificar o equivocado Regime Jurídico Único, introduzir o princípio da eficiência no direito administrativo e instituir o Plano Plurianual). Preocupado em superar de vez os traços patrimonialistas entalhados na Administração brasileira, esse Plano promoveu a distinção entre as atribuições primordiais do Estado com o objetivo de focalizar a atuação estatal nas funções de formulação e avaliação de diretrizes de política pública.

A justificativa para tal separação de funções é explicada por Marcelino. Segundo o autor, a administração indireta ficaria encarregada de executar as atividades estabelecidas pela administração direta, pois “a implementação de políticas exige agilidade e flexibilidade por parte das instituições que vão realizá-las, diferentemente da função de formulação” (MARCELINO, 2003, p. 651).

O governo FHC, influenciado pelo pensamento de Bresser Pereira, também buscou modificar o eixo histórico do funcionamento do Estado: desde 1930, a ênfase das reformas estava nos meios (orientada para processos, métodos); agora, a essência da proposta era nos resultados (a satisfação das necessidades dos cidadãos).

Houve um verdadeiro “choque cultural”, na interpretação de Fernando Abrucio (2007), que influenciou a atuação dos gestores públicos e contribuiu para inovações governamentais e mudanças institucionais nos últimos dez anos. Dentre os fatores positivos dessa reforma podemos destacar, então, as medidas de restrição orçamentária, como a imposição de tetos para o gasto com o funcionalismo, e de otimização das políticas, por meio da introdução do princípio da eficiência como base do direito administrativo.

Quanto às críticas feitas ao plano reformista da gestão FHC, sabe-se que elas concernem ao predomínio dos fatores econômicos na lógica de seu governo, o que teria tolhido o avanço da autonomia de entidades da administração indireta pelo medo de perder o controle sobre os gastos públicos. Além disso, segundo Abrucio (2007), os parlamentares temiam a implantação de um modelo administrativo mais transparente e voltado ao desempenho, pois isso diminuiria a capacidade de a classe política influenciar a gestão dos órgãos públicos, pela via da manipulação de cargos e verbas.

Convém ressaltar que o contexto histórico-político da década de 90 era muito mais complexo para a elaboração de uma reforma no aparelho de Estado do que aquele da reforma getulista e do Decreto-Lei nº 200. Afinal, não estávamos mais numa ditadura, mas numa democracia. Ou seja, o processo decisório não era mais centralizado, advinha de negociações e debates – um contexto muito mais suscetível a empecilhos ao plano reformista.

Conquanto a gestão FHC tenha promovido uma importante reorganização administrativa, persistiram ainda os traços patrimonialistas na cultura política brasileira; e o chamado modelo weberiano, baseado na meritocracia, não foi extinto, e sim aperfeiçoado. Um número importante de concursos foi realizado e a capacitação feita pela Enap, revitalizada.

A ampla reforma da gestão pública, contudo fracassou ainda no início do segundo mandato de Fernando Henrique, em função do problema estrutural citado e de alguns erros estratégicos ocorridos no momento de definir quais eram as funções estratégicas do Estado, que ficaram restritas aos cargos ligados basicamente à diplomacia, às finanças públicas, à área jurídica e à carreira de gestores governamentais (da qual pretendo fazer parte).

A gestão de Lula, por sua vez, tem se caracterizado pela continuação de várias iniciativas exitosas da experiência modernizante do governo FHC, pela ênfase dada ao campo do planejamento e das políticas públicas, e (ironicamente, dada a crise política de 2005) pelo aperfeiçoamento de alguns mecanismos de controle de corrupção.

Inspirado pela ascensão da democracia participativa no Brasil, a atual administração buscou reforçar os meios de comunicação entre população e governo, e entre União e entes federados. Ampliaram-se, nesse sentido, as discussões sobre o Plano Plurianual e criaram-se o Programa Nacional de Apoio à Modernização da Gestão e do Planejamento dos Estados e do Distrito Federal (Pnage) e o Programa de Modernização do Controle Externo dos Estados e Municípios Brasileiros (Promoex), ambos responsáveis por modernizar a administração pública em âmbito subnacional, em especial a nível estadual.

Ainda que o governo FHC também tivesse criado um programa de auxílio aos estados, o caráter dele estava relacionado à área financeira. O Pnage e o Promoex, por outro lado, tratam de uma temática mais ampla: a da gestão pública. A preocupação com os gastos estatais deixou de ser o fio condutor do processo de reforma; agora, o objetivo maior é reconstruir a administração pública em suas variáveis vinculadas ao planejamento, aos recursos humanos, à sua interconexão com as políticas públicas e ao atendimento dos cidadãos (ABRUCIO, 2007).

No que diz respeito aos resultados alcançados pelo Pnage/Promoex, Fernando Abrucio afirma que seu maior avanço deles foi construir tais programas por meio de ampla participação e discussão com os estados e tribunais de contas. “Este modelo intergovernamental e interinstitucional é mais participativo e funciona mais em rede do que de forma piramidal. Sua concepção é a mais adequada para implementar ações administrativas numa federação, em nítido contraste com a (nefasta) tradição centralizadora do Estado brasileiro” (ABRUCIO, p. 12, 2007).

Não se pode falar, contudo que a presidência Lula promoveu uma reforma da gestão pública. Assim como os governos (democráticos e autoritários) anteriores, o atual foi incapaz de estabelecer uma agenda reformista – ainda que tenha insistido no aumento da efetividade das políticas públicas (particularmente sociais) sem prejuízo fiscal. O Brasil ainda carece de uma visão integrada e de longo prazo para a gestão pública.

Um ponto negativo do modelo administrativo do governo Lula foi o amplo loteamento dos cargos públicos, com indicações para cargos no Executivo para promover acomodações políticas. Mesmo que essa prática não tenha sido inventada pela gestão petista, sua amplitude e vinculação com a corrupção surpreenderam negativamente devido ao histórico de luta republicana do Partido dos Trabalhadores.

É difícil (e talvez até errado) ver o lado bom de escândalos de corrupção, mas “se houve algo positivo na crise política de 2005 é que, depois do conhecimento pelo grande público do patrimonialismo presente em vários órgãos da administração direta e em estatais, tornou-se mais premente o tema da profissionalização da burocracia brasileira” (ABRUCIO, p. 77, 2007) e as ações contra a corrupção aumentaram.

Após os escândalos, avançaram os trabalhos da Polícia Federal e da Controladoria Geral da União no que diz respeito ao combate à corrupção no país. E reforçou-se a profissionalização de carreiras estratégicas do governo: uma condição sine qua non para o bom desempenho de políticas públicas.

Uma avaliação maior do funcionamento do Estado brasileiro não caberia nestas breves páginas. Por isso, à guisa de conclusão, percebe-se que ainda sofremos com os traços históricos negativos da administração pública brasileira: o patrimonialismo, o clientelismo e a corrupção. Para conter esses impulsos calamitosos ao interesse público, um planejamento de longo prazo baseado na profissionalização do servidor público, na eficiência do direito administrativo, na efetividade e na transparência das políticas públicas é necessário. Assim, o Brasil poderá se tornar um país sério.


Referências

ABRUCIO, Fernando Luiz. Trajetória recente da gestão pública brasileira: um balanço crítico e a renovação da agenda de reformas. Revista de Administração Pública, v 1, p.77-86, 2007.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Brasil: 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, v. 42, n.5, p 829 - 874, 2008.

MARCELINO, Gileno Fernandes. Em busca da flexibilidade do Estado: o desafio das reformas planejadas no Brasil. Revista da Administração Pública, v. 37, n. 3, p 641-659, 2003.

MARE. (Ministério da Administração e Reforma do Estado). Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República, Imprensa Oficial, 1995.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Braziliense, 1979.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Reformas da Administração Pública Brasileira: avanços e retrocessos




A reformulação do aparelho estatal é um tema constante nos debates políticos nacionais e, em pouco tempo, estará presente na plataforma dos Presidentes da República. Em busca da compreensão do funcionamento atual da Administração Pública e das disfunções do nosso Estado, este artigo realiza um breve retrospecto analítico das reformas administrativas brasileiras (1937, 1967, 1995), levando em consideração o contexto histórico no qual ocorreram.

Inicialmente, cabe ressaltar que foi no início do século XIX, com a vinda da família real portuguesa ao Brasil, que se criaram as condições para o surgimento do nosso espaço público, na medida em que a transferência da Corte favoreceu a transformação de uma constelação caótica de organismos superpostos em um aparelho de Estado.

Enquanto na era colonial, como constata Caio Prado Júnior (1979), a Administração Pública brasileira caracterizava-se por atribuições que não obedeciam a princípios uniformes de divisão de trabalho e hierarquia, fazendo surgir funções e competências que já pertenciam a outros servidores; no período em que a Corte esteve aqui o governo criou uma série de instituições e inovações jurídico-administrativas que tiveram grande impacto no cotidiano da antiga colônia.

Como resultado do processo histórico que se desenrolou do século XIX até a Revolução de 1930, no qual a centralização do poder era contrabalanceada pelo controle dos governadores no âmbito estatal, a cultura política brasileira ficou definida por traços patrimonialistas e clientelistas , que tolheram o desenvolvimento da democracia no Brasil – como identificou o estudo, por exemplo, de José Murillo de Carvalho (2002).

O primeiro esforço no sentido de superar a característica patrimonialista do Estado brasileiro ocorreu na Era Vargas, quando a primeira reforma administrativa ocorreu no Brasil. Embora instituída em um período ditatorial (1937-1945), tratou-se de uma tentativa ambiciosa de burocratizar a Administração Pública, introduzindo no aparelho estatal imperativos de impessoalidade, hierarquia, sistema de mérito, e a separação entre o público e o privado. A reforma, com forte inspiração weberiana, prestigiava a racionalidade e a eficiência, visando impulsionar o modelo de crescimento baseado na industrialização via substituição de importações.

Se, por um lado, o Estado Novo de Vargas fechou o Congresso Nacional e as assembléias legislativas, suspendeu garantias constitucionais, centralizou recursos, perseguiu adversários políticos e outorgou uma nova Constituição; por outro, estimulou o crescimento da indústria nacional e promoveu a racionalização burocrática do serviço público, revisando o modelo de administração de pessoal, de material e do orçamento.

Entre os maiores exemplos de suas medidas reformistas, está a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), organizado com a missão de definir e executar a política para o pessoal civil. É a partir desse momento que a admissão mediante concurso público e a capacitação técnica do funcionalismo entram em vigor, assim como a racionalização de métodos na elaboração do orçamento da União.

Segundo Marcelino (2003), doutor em administração pela USP, o Dasp obteve relativo êxito na tentativa de universalizar o sistema do mérito no Brasil até 1945, ano do fim do Estado Novo, quando foram nomeados os primeiros servidores civis sem concurso público para cargos de vários organismos públicos. Findou-se, dessa forma, o impulso reformista da década de 30.

Somente nos anos 60 que um novo ciclo reformista se reiniciou, influenciado por estudos realizados no período de governo de JK. Formulado novamente por um governo autocrático, a essência do projeto de reforma administrativa de 1967 estava na defesa da expansão da intervenção do Estado na vida econômica e social. Acima de tudo, essa reforma buscava modernizar o aparelho do Estado e torná-lo mais eficiente, prescrevendo princípios de planejamento, coordenação e descentralização para a administração federal.

Entre as principais medidas instituídas pelo Decreto-Lei nº 200/1967, que estabelecia os princípios norteadores dessa reforma administrativa, estão a substituição das atividades de funcionários estatutários por celetistas e a criação de entidades da administração descentralizada (fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e autarquias) para a realização da intervenção econômica do Estado.

Porém, de acordo com Marcelino (2003) o ímpeto modernizante e a tentativa de dar maior agilidade e flexibilidade à atuação da Administração acabaram por multiplicar a administração indireta, provocando um efeito dicotômico ainda hoje sentido entre Estado tecnocrático e moderno (representado pelas entidades da administração descentralizada) e Estado burocrático e defasado (o Estado da administração direta).

Embora entre 1979 e 1982 outros importantes avanços tenham ocorrido na Administração Pública em decorrência de programas instituídos pelo Poder Executivo, os quais buscavam a desburocratização e a desestatização, o governo civil de 1985 ainda teve de enfrentar a excessiva centralização do aparelho estatal – uma herança dos governos autoritários na política nacional.

Outro grande desafio a ser superado pelos novos governos democráticos estava ligado à imagem negativa do serviço público como fonte geradora de privilégios e ineficácia, em função de anos de reprodução de práticas patrimonialistas e fisiológicas, durante os quais 100 mil empregados ingressaram no serviço público sem concurso. A solução para esse desafio, porém está na segunda parte deste artigo, que pode ser encontrada aqui.

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

MARCELINO, Gileno Fernandes. Em busca da flexibilidade do Estado: o desafio das reformas planejadas no Brasil. Revista da Administração Pública, v. 37, n. 3, p 641-659, 2003.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Braziliense, 1979.


segunda-feira, 8 de março de 2010

Estado, sociedade e catástrofes: os terremotos no Chile e no Haiti.




O terremoto que atingiu o Chile foi um dos maiores registrados na história mundial, marcou um tremor de 8.8 graus na escala Richter, foi cerca de 500 vezes mais potente que aquele que devastou o Haiti e conseguiu até mesmo alterar o eixo de rotação da Terra. Mas, ao contrário do que ocorreu no país caribenho, onde praticamente duzentas mil pessoas morreram, o número de falecidos na nação andina não chegou à unidade dos milhares. Como explicar essa discrepância?

No caso do Chile, tal diferença na capacidade de conter o impacto dos terremotos na vida dos cidadãos é explicada pela eficiência histórica dos governos democráticos chilenos no que diz respeito à regulação da construção civil; pela eficácia da ação civil e da polícia no socorro às vítimas; e pela incisiva atuação das Forças Armadas em atenuar o caos, instalando bases em lugares estratégicos e tentando evitar roubos e tumultos nas cidades afetadas pela catástrofe.

Do lado haitiano, o alto número de mortos é explicado por fatores sócio-políticos ligados à pobreza histórica. O Haiti é habitado por uma população carente de ensino básico desde a Revolução Haitiana, a qual afugentou os cidadãos mais instruídos (hoje, cerca de metade da população é analfabeta); e sofre com as dívidas externas do século XX contraídas para pagar as indenizações da guerra com a ex-metrópole colonial, a França. Além disso, mesmo após a Revolução, o poder se manteve nas mãos de uma reduzida elite de proprietários de terra, que na era colonial contribuiu para o aumento da dependência econômica haitiana na produção de açúcar.

Na análise de Antonio Jorge Ramalho de Rocha, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), o Estado haitiano não têm conseguido organizar a vida social de uma maneira estável e sóbria, pois não há instituições políticas na trajetória histórica dele, apenas sucessão de governos.

Como conseqüência, a qualidade da infraestrutura haitiana é péssima, o que dificultou o trabalho da defesa civil e o recebimento de ajuda humanitária após a catástrofe; as construções civis são frágeis (grande parte das casas é feita de madeira); e na capital 50% da população é composta por crianças, as quais são, obviamente, mais fracas fisicamente. Sem contar que o Haiti não tem Corpo de Bombeiros e o exército não é profissional.

Quanto aos impactos econômicos, Antonio de Rocha afirma que a economia do Haiti já era muito fraca e dependente de ajuda externa antes do terremoto (cerca de 75% do PIB provinha de remessas de haitianos do exterior), devido à imagem de que o país é perigoso (a história do Haiti é marcada por sucessivas ditaduras). Agora, com as cidades devastadas, é preciso elaborar um plano entre governo haitiano e comunidade internacional que se preocupe em interromper o círculo vicioso presente no país: tem muita pobreza, não há investimento...

No que diz respeito ao Chile, segundo dados do “The Economist”, a recuperação da infraestrutura destruída está estimada em cerca de 20% do PIB. Levando-se em consideração que o contexto internacional é de retração na economia, e que a exportação de commodities chilenas diminuiu 1% em 2009, essa não é uma notícia muito animadora. Por outro lado, os preços mundiais do cobre, principal produto chileno, já aumentaram em decorrência da expectativa de diminuição na oferta desse insumo; e a mineração, uma das principais fontes de renda chilena, sobreviveu ao terremoto.

As diferentes histórias políticas e as desiguais capacidades de intervenção estatal na sociedade mostraram-se determinantes para o sucesso chileno e para o fracasso haitiano na prevenção dos efeitos causados pelos terremotos. Com a força estatal, o governo chileno pôde agir eficazmente nesse momento de exceção; já no Haiti, onde não há instituições políticas sólidas, o governo teve que esperar pela ajuda humanitária internacional para conter o impacto do desastre em sua sociedade.


sábado, 6 de março de 2010

“Guerra e Cinema: logística da percepção”



As marcas da Segunda Guerra Mundial deixadas na infância de Paul Virilio, que presenciou a ocupação nazista em Paris e os bombardeios dos aliados em Nantes, talvez estejam relacionadas com seu interesse em estudar o fenômeno da guerra. Qualquer que tenha sido sua motivação, o fato é que a análise da “logística da percepção militar” presente em “Guerra e cinema” é oportuna numa época em que guerras e atentados terroristas são transformados em espetáculos.

A partir de uma abordagem que define a história das batalhas como a história da metamorfose de seus campos de percepção, o autor constrói a tese de que a “guerra não pode jamais ser separada do espetáculo mágico” (p. 24). No primeiro capítulo do livro, Paul Virilio afirma que as técnicas de representação, da cartografia até a fotografia e a cinematografia, foram sistematicamente empregadas nos conflitos do século XX não só como forma de propaganda às populações civis, mas também na preparação de táticas e estratégias pelos combatentes. É sob essas duas perspectivas, aliás, que o autor estrutura seu livro, ora apresentando argumentos que identificam o cinema como propaganda, ora mostrando os benefícios trazidos pela técnica cinematográfica à tecnologia militar (ou vice-versa).

Como exemplo da utilização do cinema como instrumento de propaganda, no capítulo “o cinema Fern Adra” o filósofo francês afirma que não foi por acaso que os filmes de guerra multiplicaram-se durante a II Guerra. No momento em que os dois lados do conflito buscavam mobilizar as massas, EUA e Alemanha encontraram no cinema o aparelho que procuravam. Em Hollywood, a produção cinematográfica, quando não era financiada pelo Pentágono, era acompanhada atentamente pelo Alto Comando militar, resultando em películas como Why we fight (Por que nós combatemos), de 1942. Do lado nazista, o financiamento do governo permitiu que a indústria cinematográfica alemã se igualasse, em termos técnicos, à Hollywood – produzindo grandes épicos como Die goldene Stadt (A cidade dourada), 1942.

Ainda quanto ao uso do cinema como forma de propaganda às populações civis, Paul Virilio afirma que foi após o término do primeiro conflito mundial que se criou a necessidade de se impor às massas “cultos de substituição”, na medida em que a partir da Grande Guerra as antigas relações entre religião e Estados militar-industriais chegaram ao fim. Nesse sentido, os Estados que haviam se constituído por meio de violência aberta contavam naquele momento com poucos meios de persuasão, e o cinema logo foi nacionalizado, a exemplo do que ocorreu na União Soviética com Lênin, na tentativa de criar uma unidade nacional.

No segundo capítulo (“o cinema não é eu vejo, mas eu voo”) e no terceiro, intitulado “vós que entrais no inferno da imagem perdei toda esperança”, Virilio continua sua análise dos impactos da Primeira Guerra Mundial sobre a evolução das técnicas cinematográficas e militares. Ele afirma que é nesse momento que se inicia a “heroicização cinemática”, isto é, os soldados passam a ser eternizados no cinema como heróis nacionais; e que uma grande revolução nos campos de batalha se desenrola: a imagem se prepara para triunfar sobre o objeto, o tempo sobre o espaço, em uma guerra na qual a representação dos acontecimentos dominará a apresentação dos fatos.

Trata-se, afinal, da “logística da percepção militar” a qual Virilio se refere. Uma forma de compreender o mundo da guerra a partir do casamento entre arma e olho, órgão de percepção que, a partir da Primeira Guerra, passou a ser representado no âmbito militar pela aviação, encarregada de reconhecer os movimentos dos inimigos nos fronts. Mas os olhos serão, sobretudo, os olhos das objetivas das primeiras câmeras de bordo. “A realidade da paisagem de guerra torna-se cinemática, porque tudo muda, tudo se transforma, [...] tornando inúteis os mapas do Estado-Maior e os antigos levantamentos topográficos” (p. 169).

O advento da Segunda Guerra Mundial tornaria essa logística ainda mais transparente. A Blitzkrieg, a batalha do Marne (em 1940), a extrema mobilidade dos exércitos, toda essa “nova unidade de tempo dos conflitos” contribuiu para a percepção de que apenas o fotograma do filme de guerra permitiria a compreensão do campo de batalha. Assim, mais uma vez as Forças Armadas buscaram aperfeiçoar as pesquisas no campo visual, na tentativa de apreender a nova dinâmica de guerra.

A velocidade percebida nos enfrentamentos da Segunda Guerra relaciona-se com aquilo que o autor denominou dromologia. Uma perspectiva que implica o declínio das táticas de guerra, do poder-mover, e o prestígio dos movimentos de combate (daí o emprego do termo em grego, dromos, que sugere uma corrida), do poder-comover. A dromoscopia, enfim, representa a derrota do tempo de reflexão para a velocidade dos sentidos: “[...] agora se trata menos de compreender do que ver” (p. 81).

Desenvolvendo esse conceito em forma de crítica à sociedade atual, nos capítulos finais, o autor denuncia a negação do caráter humano na guerra; não no sentido moral, mas no sentido técnico, de que os soldados (em sentido amplo) renunciam sistematicamente, e deliberativamente, à imagem ocular em favor da mira ótica. Trata-se do que Virilio chamou de fé numa “visão sem olhar”.

Da mesma forma, o autor atenta para a expansão do campo de percepção dos conflitos. O combate é substituído por simuladores que, cada vez mais, se assemelham a um cinema permanente. O real se confunde com o virtual; o ver com o prever. Enfim, são vários os exemplos dados pelo filósofo que apontam para a eliminação do elemento humano na guerra, e para a transformação desta num filme, num espetáculo.

“Guerra e cinema” não é um livro preocupado em examinar o conteúdo de filmes de guerra. Não obstante as referências a produções cinematográficas presentes em toda a obra, o autor está muito mais interessado em mostrar a linha tênue que separa a evolução das técnicas cinematográficas das militares. Partindo de um ponto comum aos dois campos, a criação do projetor de luz em 1904, Paul Virilio constrói sua tese de que a guerra depende de representações e afirma, inclusive, que “a guerra vem do cinema, e o cinema é a guerra” (p. 61).

O filósofo francês faz uma análise inovadora e angustiante, revelando aspectos que relacionam a indústria cultural à indústria militar. A leitura requer certa concentração, em decorrência das idas e vindas do autor pela história, mas é proveitosa e pertinente numa era marcada pelo apego à tecnicidade. Como nos lembra Virilio, “[...] ainda ontem, morria-se por um brasão, uma imagem inscrita em um estandarte ou uma bandeira, mas agora morre-se para aperfeiçoar a nitidez de um filme, a guerra torna-se, enfim, a terceira dimensão do cinema...” (p. 194).

Referências
VIRILIO, Paul (2005). Guerra e cinema: logística da percepção. São Paulo: Boitempo, 208 p., ISBN 85-7559-076-6.